Saudosismos bolorentos


O PSD, pela pena do seu mais antigo deputado regional, Joaquim Machado – que já governava nos tempos das últimas decadentes maiorias absolutas de Mota Amaral – disserta esta semana neste jornal sobre a esquerda, a quem acusa de ter “saudades” de regimes ditatoriais. Esse conjunto de linhas bordadas a ódio e desprezo vêm a propósito do que, diz o autor, ser a posição do Bloco de Esquerda acerca da invasão da Ucrânia pela Rússia.

O articulista, com o objetivo de atacar o Bloco, dedica mais de metade do texto ao PCP, o que é sintomático da manifesta dificuldade em encontrar no Bloco amores ou saudades de regime pouco ou nada democráticos. O mesmo não se pode dizer do PSD, pois todos nos recordamos dos “bons” negócios que o último governo do PSD/CDS desenvolveu com Maduro e ainda está fresco na memória o acordo do PSD com o Chega, que teve a inovação de incluir uma cláusula de respeito pelos direitos humanos, não vá o diabo tecê-las.

É o típico “tiro ao lado” de quem não tem argumentos: discorre, embrulha, e conclui, neste caso, que tudo o que está à esquerda do PS é anti-democrático.

Mas vamos aos poucos argumentos do articulista no que respeita ao Bloco, pois parece que o debate promovido pelo PPM na semana passada sobre as “consequências políticas, sociais e económicas, nos Açores, da invasão russa da Ucrânia: medidas e respostas” não foi suficiente.

Nesse debate, em que se esperavam propostas da parte do proponente, o que afinal tivemos foi um pretexto para atacar o Bloco, na tentativa de classificar como anti-democráticos todos os que não estão com a NATO. Como se as bombas da NATO na Sérvia ou na Líbia tivessem espalhado a democracia e não a destruição, como fazem todas as bombas, independentemente da proveniência.

Joaquim Machado acusa o Bloco de não ter aprovado a ajuda financeira à Ucrânia no parlamento europeu. O que não se diz é que o Bloco se absteve e que essa “ajuda” iniciou-se em 2014 e votava-se novo prolongamento. Prolongamento esse condicionado ao cumprimento de um programa do FMI, com duras medidas de austeridade. E essa votação ocorreu antes da invasão.

Bem sei que o PSD e Joaquim Machado são adeptos de programas do FMI, como se demonstrou com a convicção com que impuseram aos portugueses um violento programa de austeridade que espalhou desemprego, sofrimento e pobreza pelo país. Pelo contrário, o Bloco não deseja aos ucraniamos o que rejeita que seja aplicado ao povo português.

Omite, no entanto, o articulista, o voto favorável do Bloco na resolução de condenação da invasão pela Rússia e de apoio à Ucrânia, apoio esse não condicionado a um programa de austeridade, aprovado no Parlamento Europeu a 1 de março.

Joaquim Machado diz ainda que o apoio do Bloco ao povo ucraniano e a condenação sem reservas da invasão da Ucrânia pela Rússia que subscrevemos em conjunto com o PSD e outros partidos não passa de “hipocrisia política”. Parece ser necessário expor o ridículo do argumento: se o Bloco não condenasse a invasão nos termos em que o fizemos, certamente seria classificado de “putinista” pela pena do articulista. Como a condenação por parte do Bloco é clara e inequívoca, então não passa de “hipocrisia política”. Se Joaquim Machado pensa assim, então porque subscreveu o mesmo texto?

Finalmente, e mais importante, Joaquim Machado cita palavras de dirigentes do Bloco (proferidas antes da invasão, embora isso não seja relevante para o caso) que procuravam contextualizar a crise que se agudizava à data e as diferentes posições dos intervenientes – no caso frases de Mariana Mortágua – para acusar o Bloco de desculpabilização da invasão. Para além da visão maniqueísta e quase infantil de que, em qualquer conflito, só há “bons e maus”, não há, nem nunca houve qualquer tentativa de desculpabilização da invasão de Putin, ainda para mais numa altura em que esta ainda não tinha começado. A condenação do Bloco à agressão de Putin sempre foi clara e frontal.

Mas a argumentação de Joaquim Machado coloca a nú a ideia perigosa e pouco democrática de que não é aceitável sequer a análise e o debate público sobre os motivos, argumentos e perspectivas dos atos dos outros, principalmente daqueles com quem discordamos. Esta ideia perigosa deixa transparecer as indisfarçáveis saudades de Joaquim Machado por um tipo de regime muito pouco livre e democrático. O que diz muito do PSD e dos seus deputados.