As vertentes e a Ribeira Quente


Uma vertente é uma forma geomorfológica na qual ocorrem permanentemente movimentos de massa que se devem, primeiramente, à acção da gravidade. “Tudo o que sobe tem que descer”. Os movimentos de massa podem ser lentos, quase imperceptíveis, mas por vezes ajudados, por influência de outros factores como a água e a vegetação, os movimentos de massa podem ser rápidos e podem ser responsáveis pelo transporte de grandes volumes de rochas e sedimentos.

Pensemos num esquiador a descer uma encosta. Imagine-se que o monte que o esquiador desce é pouco inclinado inicialmente e o pobre esquiador mal consegue adquirir velocidade para sentir o vento na cara. Uns metros mais à frente depara-se com uma grande inclinação e começa a deslizar a grande velocidade, para sua satisfação. O mesmo se passa com os sedimentos e rochas numa vertente. Quanto maior a inclinação mais fácil será às rochas e sedimentos deslizarem encosta abaixo. Uma vertente é tanto mais estável, quanto menor for a sua inclinação. Isto significa que numa vertente com uma grande inclinação os movimentos de massa serão provavelmente frequentes até que a vertente estabilize. A inclinação a partir da qual uma vertente é considerada estável é de 45º.

Tal como tudo em geologia, as vertentes não são estáticas e nenhuma será igual daqui a 1.000 anos. Essa evolução é lenta mas quase inevitável, a não ser que a actividade humana a impeça ou acelere.

E para quê toda essa conversa sobre geomorfologia agora? Bem, porque sinceramente estou farto de ter a terra onde nasci isolada quase todos os Invernos, de eu e a minha família e todos os que lá vivem corrermos perigo de vida  quando passamos no único acesso à Ribeira Quente e chove. A estrada que liga Ribeira Quente a Furnas possui, em quase toda a sua extensão , do lado direito no sentido N-S, vertentes de várias inclinações. Muitas delas são de baixa altura e/ou de baixa inclinação e oferecem pouco perigo. Outras são quase verticais e com dezenas de metros de altura. Essas vertentes não são estáveis nem o serão nem daqui a centenas ou milhares de anos. A sua instabilidade deve-se a vários factores, a começar obviamente pela sua inclinação, pelo tipo de rocha/solo, excesso de vegetação ou reduzido coberto vegetal, etc.

Leio nos jornais, por vezes, disparates ditos pelos nossos governantes, como foi a história suposta estrada alternativa que iriam construir pelo Caminho do Agrião e que iria ligar a Ribeira Quente à Povoação. Da primeira vez que se falou nisso, em 1997, tinha eu 16 anos, sempre disse que era um disparate. Seria criar mais um problema de manutenção de uma estrada que seria aberta por formações geológicas tão ou menos estáveis quanto as que ladeiam a estrada existente. Em vez de resolver o problema criaria outro, tão ou mais difícil de resolver, para não falar dos milhões que se gastariam para construir uma estrada transitável naquela zona. Qualquer pessoa que tenha feito aquele caminho a pé, e que tenha dois dedos, aliás, um dedo de testa via que seria uma obra de Santa Engrácia. Vendo bem, são os mesmos que construíram a famosa estrada para a Fajã do Calhau para criar um tão necessário acesso a meia dúzia de casas de férias. Está tudo explicado.

O que é certo é que 13 anos depois, este tempo teria sido tempo mais que suficiente para estabilizar as vertentes da estrada da Ribeira Quente. O que se fez? Colocou-se uma nova camada de alcatrão na estrada para tapar os buracos e embelezou-se. Sim, porque o sentimos-nos muito mais seguros com as hortências e azáleas que plantaram à beira da estrada. Assim está tudo bem. Entretanto vêm os Invernos e os movimentos de massa continuam. Por sorte ainda não atingiram ninguém. Mas é uma roleta russa e um dia isso poderá acontecer, como aconteceu no Nordeste. E asseguro que os autocarros que transportam as crianças para a escola e circulam naquela estrada diariamente não transportam apenas 3 crianças em cada viagem.

As vertentes estabilizam sozinhas e não precisam da mão humana para acelerar o processo. Mas quando existem actividades humanas na base de uma vertente, temos uma situação muito grave, citando o comentador desportivo Rui Santos (não, não admiro o homem, mas diz umas frases excelentes para tornarem-se frases feitas).

evolução vertente

Os detritos provenientes dos movimentos de massa das vertentes acumulam-se na sua base. Essa acumulação irá, lentamente, levar à diminuição do ângulo da vertente e, consequentemente, ao aumento da estabilidade. Havendo uma estrada na base da vertente os detritos são removidos aquando dos movimentos de massa (óbvio!)  e, não havendo detritos na base, a inclinação da vertente será praticamente a mesma e a sua estabilidade também. O problema mantém-se. É o que acontece na estrada da Ribeira Quente.

Posto isto, a única solução para o problema é a estabilização das suas vertentes da estarda. Já se fez algo muito semelhante na praia de Água d’Alto. Até hoje ninguém viu mais nenhuma derrocada naquela zona desde a intervenção que sofreu. Pode argumentar-se que é um atentado ambiental já que a estabilização descaracteriza a paisagem. No entanto há que ser racional e pragmático. Se se admitiu aquilo que foi apelidado Crime Ambiental da Fajã do Calhau, esta intervenção é inteiramente justificada. Em 1997 optou-se por reconstruir e manter perto de 1.000 pessoas  na Ribeira Quente, é preciso  dar-lhes, pelo menos, segurança.

PS: E não me venham falar em “Há o heliporto e o porto, que são vias alternativas”. Eu não tenho helicóptero e não conheço ninguém que possua um na Ribeira Quente. Quanto ao porto, não sei se repararam mas as derrocadas são mais frequentes quando há temporais, logo o porto não é opção, para além dos barcos não serem de transporte e muito menos rápidos o suficiente para uma emergência.


7 comentários a “As vertentes e a Ribeira Quente”

  1. o que se passa dna R.Quente é de facto vergonhoso! Antes de se fazerem as SCUTS ou mesmo o caminho de amigos para a F.do Calhau, havia que empreender esta obra, aliás como outras noutras freguesias micaelenses. A solução do Redondo ou do Agrião, defendidas pela verdadeira anedota que é o presidente da câmara da Povoação, são um autêntico disparate. Para já, a única solução que se me afigura como a mais viável é a construção de tuneis ou semi-tuneis nas zonas mais vulneraveis e que serviriam como cunhas de deslizamento ou como bases artificiais das vertentes. Meia dúzia de secções com 200 ou 300 metros, talvez 1km no seu todo e estaria o problema integralmente resolvido. Mas para isso era necessário haver pelo menos 2 dedos de testa, e isso é coisa que nem o secretário, nem o presidente da câmara têm.

    Uma citação de 1 ribeiraquentense à RTP-A: “nós não queremos uma estrada para a Povoação. Precisamos de uma estrada para Ponta Delgada”.
    Tomem lá que é para aprenderem.

  2. Caro anónimo,

    A solução que sugere seria provavelmente a mais económica, rápida e talvez barata.

    As pessoas que alguma influência política poderia ter neste assunto são todas do mesmo partido, mesmo as mais próximas da Ribeira Quente. Defendem-se a todo o custo, mesmo que isso prejudique as pessoas que lá vivem.

    O povo da RQ não é reivindicativo e deixa-se ficar muitas vezes com falsas promessas e migalhas. Seria necessário que técnicos conceituados na área viessem a público falar da situação para que mais pessoas se apercebessem do disparate que ali se passa, como em outros locais da ilha.

    PS: Compreendo que não se queira identificar no site, mas se o quiser fazer de forma privada é só enviar mail para amrlima AT gmail.com

  3. Caro António Lima, agradecendo a amabilidade do seu post scriptum, pode-me confirmar se o seu mail é: amrlimaATgmail.com? Como contém 2 letras maiúsculas fico na dúvida. Na sequência da sua reacção ao meu comentário, acho que poderiamos trocar impressões sobre o assunto do post, até porque como sabe existe, infelizmente, um déficit de participação cívica no nosso concelho e acho que há que reunir a massa crítica existente para que se possa estabelecer uma plataforma ou um fórum que aborde e proponha soluções para este e outros problemas.
    Aguardo a confirmação do seu endereço de correio electrónico.

    Cumprimentos.

  4. Apenas substituí o @ por AT porque é uma forma de impedir que o email seja recolhido automaticamente para envio de spam. Substitua o AT por @ e tem o email correcto 🙂

  5. Caro António, não vai ser fácil haver comentários identificados, porque este é um assunto melindroso, porque quem comanda é o PS. Sabemos todos nós que precisamos de uma estrada alternativa. Tinhas 16 anos, quando ouviste falar deste assunto. Pois muito bem, viu também, o 1º presidente PS na Ribeira Quente, eleições ganhas em Dezembro, 2 meses depois da catástrofe. Esse presidente falou à RTP-A e deixou uma grande entrevista, salvo erro, ao expresso nas Nove.Prmeteu forte, rijo e valente sobre a estrada alternativa, Até afirmou que ia ser no seu mandato, ( 8 anos ). Há quantos anos foi? Aonde está a estrada alternativa? E é assim o povo da Ribeira Quente. Penso que os governantes que são do PS, deviam olhar para esta gente, porque eles confiaram aos respectivos governantes o seu voto.
    Cumprimentos.

  6. O comentário deixado acima por Manuel António, não foi bem explícito, passo a citar: “entrevista à RTP/A e deixou uma uma grande entrevista ou reportagem ao Jornal Expresso das Nove, se não estou em erro, sei que foi publicado num jornal.

  7. Manuel António,

    Compreendo que as pessoas não se queira identificar e obviamente que respeito essa decisão. Mas sinceramente se há receio por parte das pessoas de se identificarem é porque algo não está bem. De algum dos lados.

    Não tenho qualquer ligação a qualquer partido, para além da cruzinha que coloco nas eleições e da minha opinião. Talvez seja por isso, e também porque passo pouco tempo na R. Quente e no concelho em geral, que me parece tão estranho que, por estar determinado partido a mandar, os outros tenham que se calar.

    Mas voltando ao assunto, e não querendo desculpabilizar/defender ninguém (pode ver-se pelo meu post que fiz uma crítica aberta a todos os que estiveram no poder de 1997 até aqui), parece-me que a junta é quem tem menos poder para mudar alguma coisa. A responsabilidade, a meu ver, cai na Secretaria da Habitação e Equipamento e num governo que falou sem pensar quando disse que o caminho do agrião alguma vez seria uma alternativa.

    Mas cada um com a sua culpa e eu com a minha por nunca ter feito nada, até aqui.

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